1 de jul. de 2010

Ressurreição

Dormiam juntos, ele e seus apóstolos, o frio apertava naquele ano e, por isso, eram obrigados a aceitar o cheiro e a proximidade uns dos outros. De repente um deles começa a falar com o que estava no centro:
“Jesus, sei que não é natal, sua data de aniversário, e nem mesmo um dia especial, mas venho guardando esse presente pra você tem tanto tento, aceite, Jesus, é de coração...”
Jesus era um mendigo, como o messias, era bondoso, aceitava o fardo de ser o filho de Deus na terra e por isso aceitava o sofrimento e a dor, e também o presente do amigo. Pegou a garrafa que o outro tirou de algum lugar mágico, pois não a tinha visto antes, tirou a rolha e cheirou, algo poderoso residia ali, uma mistura de ervas maceradas em cachaça e muito tempo de fermentação. Agradeceu o presente e se retirou dali, disse que precisava ficar sozinho, precisava meditar sobre os infortúnios do homem.
Ele andou até a casa de seu pai, precisava de conselhos e orientação. Sentou-se na escadaria da igreja, em um cantinho escuro, escondido da luz do poste e do mundo pela sombra de uma árvore densa. Começou a pensar, a lembrar, logo entrou em um estado de melancolia tão terrível que não podia mais agüentar, começou a chorar, o Pai não dizia nada, nem um sinal, por que tinha sido abandonado? Antes Ele aparecia, falava, guiava...
O contraste das lágrimas quentes com a pele fria o trouxe de volta. O frio aumentava e já era suficiente para atormentá-lo mais do que seu próprio coração. Tirou a rolha da garrafa que ganhara e cheirou novamente. Por pouco não vomitou, mas sabia que tinha álcool ali, então bebeu um bom tanto do conteúdo da garrafa, tapando o nariz. A coisa desceu queimando, e chegou até o estômago para dali emanar um calor enorme, sentiu-se bem, encarou aquilo como um remédio e, resignado, tomou todo o resto.
Logo as coisas começavam a ficar estranhas, a melancolia começava a dançar e a pular de alegria, produzindo cores em seu movimento. Aquilo o confundiu, logo sua cabeça rodava e rodava em sentido anti-horário, o que traria mais lembranças do passado, de sua infância, da loucura e de como foi, gradualmente perdendo tudo, queria que tudo rodasse para o outro lado, queria ver o futuro, mas não podia controlar aquilo. Só o passado importava para a maldita melancolia.
O delírio e a loucura o atingiram em cheio. Levantou cambaleando pela escada da igreja, precisava sair dali, ouvia vozes lá de dentro, vozes de demônios que o atormentavam e queriam que ele se rendesse, tentou resistir, correr, mas já não podia andar, caiu de joelhos ao pé da escada, e as cores o agarraram, e se misturaram, e tudo ficou branco e depois negro.
Logo alguém viu o corpo e ligou para que o tirassem o monte de lixo que se acumulara na calçada, e os homens vieram buscá-lo, incomodados com o frio terrível que fazia, por terem que se locomover por tão pouco. Pegaram o mendigo da calçada, sem cuidado, “está morto”, disse um deles, “não há nada para ser feito”, e o jogaram lá dentro, “depois vamos ter que limpar tudo com álcool, mas e o cheiro? Como se tira esse cheiro?”
Levaram para o necrotério e o deixaram em cima de uma mesa, não havia necessidade de colocá-lo na geladeira, estava tão frio, seria apenas mais um lugar para ele impregnar com seu cheiro. O legista não estava, mas não precisavam dele, logo pela manhã viriam buscá-lo e o encheriam de formol, seria transformado em brinquedo dos alunos de medicina.

***
O tempo passou naquela sala, mas mal se percebia, apenas o barulho do relógio e, se se prestasse bastante atenção, parecia poder-se ouvir o som de uma respiração forte, como se alguém dormisse pesadamente, e se alguém ligasse a luz e observasse o lugar iluminado pela luz das lâmpadas fluorescente talvez achasse que algo se movia por baixo do lençol que escondia o que estava posto sobre uma das mesas...
Abriu os olhos. Escuro. Porém ele sabia que esta também tinha sido a primeira visão em sua outra vida, sentou-se onde estava, tentando entender o que era, pelo menos não era um caixão, havia espaço para se movimentar. Um pouco do luar atravessava a janela e logo via um pouco do lugar, na parede, um ponto mais brilhante que o resto, era o interruptor.
Acendeu a luz, olhou ao seu redor e entendeu o que tinha acontecido: três dias já deviam ter passado, e agora ele se levantava dos mortos e podia, sem questionamento, assumir seu lugar de salvador. Voltou para a mesa e se sentou na beirada, maravilhado, a ocasião pedia alguma coisa especial, tirou do bolso algumas bitucas de cigarro, retirou o resto de fumo de cada uma delas, juntou com a mão sobre a mesa e derramou em uma tira de papel de pão, de outro bolso tirou uma caixa de fósforos, riscou um deles e acendeu o seu recém-criado cigarro.
“Ah, que delícia, assim está muito melhor...”
Soltava lentamente a fumaça enquanto pensava no que devia fazer, que tipo de milagre, que tipo de maravilha, nunca mais diriam que era louco, que não sabia o que falava.
O cigarro se consumiu e estava livre. O tique-taque do relógio fez a melancolia voltar, sentia-se só, desamparado, de repente soube o que tinha que fazer. Levantou-se e começou a olhar as gavetas da geladeira do necrotério, olhou o primeiro, mas não gostou do que viu, puxou o segundo, era uma mulher; não, não estava preparado para uma mulher, nunca tinha se relacionado bem com elas, sempre o enxotaram, o maltrataram, o primeiro deveria ser simples. Encontrou afinal um velho de aparência amigável, alguém que julgava ter tido uma vida feliz e que sem dúvida morrera em paz. Seria esse o primeiro a presenciar um de seus milagres.
Inspirou profundamente, esfregou as mãos, olhou para os céus e pediu em voz baixa, erguendo as mãos, depois as colocando sobre a cabeça fria do velho. Repetiu o ritual três vezes, sabia que era assim, sabia que estava fazendo tudo certo.
Abriu um dos olhos para ver, o outro, para ter certeza. Nada. Nem um mísero movimento, nem uma luz, nem vida. Olhou de novo ao seu redor, não havia ninguém, ninguém presenciara seu fracasso A realidade pesava novamente, o gosto amargo do cigarro, da bebida e da melancolia voltaram à sua boca, o frio apertava novamente, começou a chorar baixinho, cheio de vergonha, querendo morrer...

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