1 de jul. de 2010

Ressurreição

Dormiam juntos, ele e seus apóstolos, o frio apertava naquele ano e, por isso, eram obrigados a aceitar o cheiro e a proximidade uns dos outros. De repente um deles começa a falar com o que estava no centro:
“Jesus, sei que não é natal, sua data de aniversário, e nem mesmo um dia especial, mas venho guardando esse presente pra você tem tanto tento, aceite, Jesus, é de coração...”
Jesus era um mendigo, como o messias, era bondoso, aceitava o fardo de ser o filho de Deus na terra e por isso aceitava o sofrimento e a dor, e também o presente do amigo. Pegou a garrafa que o outro tirou de algum lugar mágico, pois não a tinha visto antes, tirou a rolha e cheirou, algo poderoso residia ali, uma mistura de ervas maceradas em cachaça e muito tempo de fermentação. Agradeceu o presente e se retirou dali, disse que precisava ficar sozinho, precisava meditar sobre os infortúnios do homem.
Ele andou até a casa de seu pai, precisava de conselhos e orientação. Sentou-se na escadaria da igreja, em um cantinho escuro, escondido da luz do poste e do mundo pela sombra de uma árvore densa. Começou a pensar, a lembrar, logo entrou em um estado de melancolia tão terrível que não podia mais agüentar, começou a chorar, o Pai não dizia nada, nem um sinal, por que tinha sido abandonado? Antes Ele aparecia, falava, guiava...
O contraste das lágrimas quentes com a pele fria o trouxe de volta. O frio aumentava e já era suficiente para atormentá-lo mais do que seu próprio coração. Tirou a rolha da garrafa que ganhara e cheirou novamente. Por pouco não vomitou, mas sabia que tinha álcool ali, então bebeu um bom tanto do conteúdo da garrafa, tapando o nariz. A coisa desceu queimando, e chegou até o estômago para dali emanar um calor enorme, sentiu-se bem, encarou aquilo como um remédio e, resignado, tomou todo o resto.
Logo as coisas começavam a ficar estranhas, a melancolia começava a dançar e a pular de alegria, produzindo cores em seu movimento. Aquilo o confundiu, logo sua cabeça rodava e rodava em sentido anti-horário, o que traria mais lembranças do passado, de sua infância, da loucura e de como foi, gradualmente perdendo tudo, queria que tudo rodasse para o outro lado, queria ver o futuro, mas não podia controlar aquilo. Só o passado importava para a maldita melancolia.
O delírio e a loucura o atingiram em cheio. Levantou cambaleando pela escada da igreja, precisava sair dali, ouvia vozes lá de dentro, vozes de demônios que o atormentavam e queriam que ele se rendesse, tentou resistir, correr, mas já não podia andar, caiu de joelhos ao pé da escada, e as cores o agarraram, e se misturaram, e tudo ficou branco e depois negro.
Logo alguém viu o corpo e ligou para que o tirassem o monte de lixo que se acumulara na calçada, e os homens vieram buscá-lo, incomodados com o frio terrível que fazia, por terem que se locomover por tão pouco. Pegaram o mendigo da calçada, sem cuidado, “está morto”, disse um deles, “não há nada para ser feito”, e o jogaram lá dentro, “depois vamos ter que limpar tudo com álcool, mas e o cheiro? Como se tira esse cheiro?”
Levaram para o necrotério e o deixaram em cima de uma mesa, não havia necessidade de colocá-lo na geladeira, estava tão frio, seria apenas mais um lugar para ele impregnar com seu cheiro. O legista não estava, mas não precisavam dele, logo pela manhã viriam buscá-lo e o encheriam de formol, seria transformado em brinquedo dos alunos de medicina.

***
O tempo passou naquela sala, mas mal se percebia, apenas o barulho do relógio e, se se prestasse bastante atenção, parecia poder-se ouvir o som de uma respiração forte, como se alguém dormisse pesadamente, e se alguém ligasse a luz e observasse o lugar iluminado pela luz das lâmpadas fluorescente talvez achasse que algo se movia por baixo do lençol que escondia o que estava posto sobre uma das mesas...
Abriu os olhos. Escuro. Porém ele sabia que esta também tinha sido a primeira visão em sua outra vida, sentou-se onde estava, tentando entender o que era, pelo menos não era um caixão, havia espaço para se movimentar. Um pouco do luar atravessava a janela e logo via um pouco do lugar, na parede, um ponto mais brilhante que o resto, era o interruptor.
Acendeu a luz, olhou ao seu redor e entendeu o que tinha acontecido: três dias já deviam ter passado, e agora ele se levantava dos mortos e podia, sem questionamento, assumir seu lugar de salvador. Voltou para a mesa e se sentou na beirada, maravilhado, a ocasião pedia alguma coisa especial, tirou do bolso algumas bitucas de cigarro, retirou o resto de fumo de cada uma delas, juntou com a mão sobre a mesa e derramou em uma tira de papel de pão, de outro bolso tirou uma caixa de fósforos, riscou um deles e acendeu o seu recém-criado cigarro.
“Ah, que delícia, assim está muito melhor...”
Soltava lentamente a fumaça enquanto pensava no que devia fazer, que tipo de milagre, que tipo de maravilha, nunca mais diriam que era louco, que não sabia o que falava.
O cigarro se consumiu e estava livre. O tique-taque do relógio fez a melancolia voltar, sentia-se só, desamparado, de repente soube o que tinha que fazer. Levantou-se e começou a olhar as gavetas da geladeira do necrotério, olhou o primeiro, mas não gostou do que viu, puxou o segundo, era uma mulher; não, não estava preparado para uma mulher, nunca tinha se relacionado bem com elas, sempre o enxotaram, o maltrataram, o primeiro deveria ser simples. Encontrou afinal um velho de aparência amigável, alguém que julgava ter tido uma vida feliz e que sem dúvida morrera em paz. Seria esse o primeiro a presenciar um de seus milagres.
Inspirou profundamente, esfregou as mãos, olhou para os céus e pediu em voz baixa, erguendo as mãos, depois as colocando sobre a cabeça fria do velho. Repetiu o ritual três vezes, sabia que era assim, sabia que estava fazendo tudo certo.
Abriu um dos olhos para ver, o outro, para ter certeza. Nada. Nem um mísero movimento, nem uma luz, nem vida. Olhou de novo ao seu redor, não havia ninguém, ninguém presenciara seu fracasso A realidade pesava novamente, o gosto amargo do cigarro, da bebida e da melancolia voltaram à sua boca, o frio apertava novamente, começou a chorar baixinho, cheio de vergonha, querendo morrer...

3 de fev. de 2010

Magia



O Mestre, movimentos alterados pelos excessos do dia, convida o discípulo para se aproximar e sentar-se junto a ele. Tinha algo importante para comunicar. O velho laboratório ao redor, tubos e retortas, fogo e fumaça espalhados ao redor deles. Eram estudiosos da magia quântica multi nível.
“É chegada a hora, meu rapaz, de conhecer os verdadeiros segredos que carrego, você já estudou o suficiente, agora é hora de aprender o que realmente interessa...”
“Não estou entendendo, mestre,” seus olhos brilham diante das possibilidades, havia muito tempo aguardava a revelação dos mistérios.
“Consegui dominar um poder inimaginável,” continuou o mestre, “algo que preciso compartilhar com alguém antes que me vá, porém, meu caro, este poder é por demais elevado e exige um grau de responsabilidade que, suponho, você alcançou e é melhor preparado que eu mesmo...”
O discípulo se sentiu lisonjeado, trabalhara muito para conseguir o respeito do Mestre.  Ele respondeu:
“Espero corresponder à suas expectativas, mestre, é algo alquímico, transcendente? É Algum tipo de conhecimento ancestral, passado de mestre para discípulo?”
“Não, não é nada disso, é algo novo e extremamente perigoso. É baseado no conhecimento quântico e, acaso a domine, poderá, sem nenhum esforço, teletransportar-se por curtas distâncias, comportar-se como onda ou partícula, permanecer meio vivo ou meio morto por horas ou séculos, até que abram a caixa na qual tem que permanecer para conseguir tal efeito e, quiçá, poderá ser homem e mulher ao mesmo tempo ou dividir-se em várias cópias de si mesmo, o que, evidentemente, aumentaria a diversão…”
“Isto tudo é muito interessante, Mestre, é fantástico!” Repetia o discípulo.
“Além disso,” continuava o Mestre, “poderá enganar os efeitos do tempo. Além de poder gerar pequenas quantidades de energia, o suficiente para acender cigarros ou similares em festas.”
O Mestre tira do bolso um cigarro artesanal de alguma erva oriental e acende com o dedo, numa demonstração de poder, enchendo o ar da sala com uma fumaça pesada e odorífica.
“Átomos! É um poder impressionante! Em quanto tempo acha que dominarei este poder, mestre?”
“Rapidamente, rapidamente,” responde ele exalando fumaça na forma de símbolos alquímicos. Seus olhos mudam para um tom avermelhado e  ele continua: “Porém, há um problema, e é justamente o que torna esta disciplina tão perigosa...”
O discípulo arregala os olhos.
“Para tudo há efeitos indesejados, isto é sabido, Mestre” diz, contrariado, o discípulo “o que ocorre, mestre, queda de cabelos, seborréia, impotência, nada importante, Mestre, eu sei, meu corpo já foi entregue há muito tempo às disciplinas secretas”
“Não, não é nada disso,” o mestre se teletransporta até o bar, onde prepara uma dose de uísque. Enche o copo, bebe um pouco e torna a encher o copo,  teletransportando-se de volta. “Então, o problema é que, lembra se de Heisenberg?”
“Sim, claro, o principio da incerteza, mas isso é ciência, algo inexato, superficial...”
“O problema,” continuou o Mestre, é que vislumbrei o futuro. Vi um futuro incerto, sei que algo ocorrerá, aparentemente hoje, mas não posso ter certeza, deveria ser agora e deveria ser algo ridículo, mas nunca saberemos, nunca com cereza, sempre há um fator de indeterminância, não é mesmo?”, olha para o bar e pergunta ao discípulo se ele  também quer uma dose.
Porém, antes que possa se teletransportar de novo, o Mestre soluça, sente algo, arregala os olhos e solta um pequeno arroto.
“Blurp!,” ele diz, “meu estômago, não, hic, não está, hic...”
Mais um soluço e mais um. Começa uma seqüência incontrolável de soluços, ele perde o controle de si mesmo, de seus poderes e de sua estrutura. Logo ele começa a dar pequenos saltos quânticos pela sala, aparece e desaparece por todos os lados, sem controle. Pedidos de ajuda se intercalam aos soluços. Ele começa a se dividir em várias cópias, de ambos os sexos, enchendo a sala.  Logo as divisões já não mais respeitam a integridade de um corpo, fígados desgastados dançam ao redor de pulmões não em estado melhor, cérebros tentam entender a falta de corpo e gravidade, orgãos sexuais divertem-se sozinhos, intestinos sem controle, bexigas e estômagos e olhos e bocas e testículos sem rumo.
O discípulo quer correr, quer ajudar, mas está paralisado pelo medo. A única reação que tem é chorar debaixo da mesa, mal consegue olhar para aquilo tudo. Os órgãos continuam girando pela sala em um turbilhão incontrolável, ainda se ouve os soluços, vários soluços, brotando de lugares inimagináveis, impossíveis.
Tudo aquilo dura uma eternidade para a única testemunha inteira, ele não sabe direito como, mas, de repente, tudo se junta e  se enrola, formando uma imagem grotesca, e depois começa a encolher, liberando um enorme clarão, cegando o discípulo.
Algum tempo passa e quando ele consegue enxergar novamente o Mestre não está mais lá, resta apenas a caixa mágica, agora aberta, e de dentro dela sai um gato, que sorri e  ronrona , no pescoço ele carrega uma plaqueta,  na qual está  gravado algo em baixo relevo, mas o discípulo não lê, apenas foge dali, pois esperava o pior. 

30 de jan. de 2010

Sylvia



A primeira coisa que ela vê quando acorda são suas pernas grossas e brancas. Ela procura por sinais de gangrena, pela perna podre, quase caindo, que há pouco era tão real e palpável, porém tudo não passou de um pesadelo. Reflexo de culpa por ter feito aquela tatuagem, aquela coisa de adolescente. Já não havia passado o tempo de ter esse tipo de atitude?
Fora do quarto ela escuta alguém fazendo café. Ela houve um copo se quebrando, cacos voando por toda parte, e logo depois gemidos baixinhos. Sua mãe já havia se levantado, provavelmente estaria confusa, já não sabia mais direito como fazer as coisas, a idade fez com que ela voltasse a ser criança, em suas atitudes, lembranças. Naquela casa viviam duas crianças em corpo de adulto, mas ela, diferentemente da mãe, nunca havia feito um caminho de volta.
Sylvia já tinha quase quarenta anos e ainda morava na casa da mãe, seguindo as regras da casa. Quando, por algum motivo, resolvia chegar mais tarde em casa, sua mãe ainda se desesperava, ficava acordada, esperando, não tinha nenhum tipo de liberdade. Sua mãe achava que ela não podia cuidar de si mesma, a filhinha caçula, eternamente aos seus pés, até a morte. Morte que nunca vinha, exceto para suas memórias e inteligência.
Ela desce e vai ver o que aconteceu: tudo está uma terrível bagunça, café e açúcar espalhados, cacos de vidro por toda parte. Mais essa agora, ela se sente terrivelmente magoada com aquilo tudo, por ter que carregar aquele fardo terrível e ainda ter que começar o dia daquela forma, mas, de sua boca, apenas sai um “Pode deixar, mãe, eu limpo tudo aqui...”, ela não tinha culpa, já não sabia o que fazia, repetia para sim mesma enquanto limpava tudo. Mas ela não se conteve com a insistência da mãe em ajudá-la. Gritou para que deixasse para lá, já estava resolvido. A mãe olhava contrariada, depois com os olhos de uma criança. Falava com a autoridade de uma filha repreendendo uma mãe: grita, pede que ela não faça mais aquilo, tudo em meio a um choro histérico e irritante. O olhar de sua mãe mudava para o desespero, desespero sem tamanho de alguém que se esforçava para entender, mas não conseguia. Estranhamente, depois deste tipo de cena, ela se sentia um pouco vingada, sentia prazer no sofrimento da mãe.
Ela sempre tentava se levantar antes dela, mas, de alguma forma ela percebe este esforço e acorda primeiro, sempre um pouco antes que ela, cada vez mais cedo, e é impossível fazê-la parar com isso.
Mais tarde a enfermeira chega, estava livre para ir para o trabalho.
No ônibus, ela começa a sentir o vazio de sua vida, tristeza, solidão. Vazio de uma vida que nunca existiu realmente, sempre fora uma sombra, nunca conseguiu se libertar, vê que outras pessoas estão olhando e faz um grande esforço para impedir que uma lágrima escorra por seu rosto, mas já era tarde. Estava na hora do seu remédio. Metal leve, lítio, controle para seu transtorno bipolar, assim preenchia o vazio, quimicamente, não havia consolo real, não havia mundo real, tudo não passava de reações em seu cérebro, de conexões bioquímicas que estavam funcionando de forma anormal, analisaram seu sangue e seu cabelo, então disseram: é de lítio que você precisa, falta em seu cérebro, e ela obedeceu, como a ovelhinha que sempre foi.
Ninguém em seu trabalho tinha paciência para ouvi-la. Ela também não queria ouvi-los, ela queria falar, falar sem parar, e enquanto outros falavam, ela apenas se concentrava em não perder o ponto onde tinha parado, queria apenas continuar o que estava falando, falar e falar.
“Por que ninguém me escuta?”
Queria falar sobre suas doenças, reais e imaginárias, queria falar sobre remédios, tratamentos, sobre sintomas, novas descobertas da medicina no combate à depressão. Quando ela chegava para o café, primeiro todos ficavam quietos, esperando que ela não incorporasse nenhum dos assuntos que eram falados. Depois todos se apressavam para terminar o café, café tomado quente demais, inúmeras línguas queimadas e de volta ao trabalho, ela fazia o lugar funcionar.
Seu trabalho era mecânico e repetitivo. O dia todo para pensar, para oscilar de humor, montanha russa de sentimentos. Ora queria dançar, cantar, mostrar a todos suas novas tatuagens sobre suas novas tatuagens feitas para irritar a mãe que nem mesmo percebeu que ela as havia feito, falar de filmes e livros, ora uma nuvem de inadequação tomava conta de seus pensamentos, queria morrer, queria que todos morressem, queria fugir de sua vida.
Comia seu almoço sozinha. Almoço vegetal, saudável, ninguém nunca a acompanhava, e quando insistia em acompanhar alguém, todos pareciam incomodados, ficavam medindo as palavras, com medo de acionar a torrente de palavras, por isso ela preferia acreditar que era ela quem preferia comer sozinha.
Sentia-se se estranha naquele dia, por isso se permitiu uma coca-cola e alguns minutos a mais de almoço, não havia nada tão urgente no que fazia, tudo podia esperar.
Quando voltou haviam ligado para ela, tinha sido a enfermeira, ela precisou se ausentar com urgência. Sua mãe estava sozinha, ela tinha que ir até lá para assumir o lugar da enfermeira, mas sentia um impulso infantil, uma vontade estranha de permanecer no trabalho, deixar sua mãe sozinha um pouco, ela nem mesmo se lembrava que tinha uma filha, além do mais, o que ela poderia fazer além de quebrar alguns copos? Não aconteceria nada de grave, seria apenas mais uma de suas pequenas punições, para sentir-se melhor.
Continuou seu trabalho como se nada tivesse acontecido, tentou fazer com que sua mãe desocupasse o terreno que ocupava em sua cabeça, porém forçá-la parecia fazer com que ganhasse mais força, isso parecia aumentá-la, aumentava seu tamanho e poder, todos aqueles anos de chantagem e superproteção materna tomavam conta de sua mente. Tudo que fez naquela tarde fazia com que se lembrasse de sua mãe, era como se, no final das contas, fosse apenas um fantoche, a punição, como sempre, acabou recaindo sobre ela.
Voltou para casa ao final do expediente, abriu a porta, esperava encontrar sua mãe chorando em algum lugar, tentando consertar algo que quebrara, ou talvez assustada em sua cama, coberta até a cabeça, com medo de alguma coisa. Não estava na sala, nem na cozinha. Foi até o quarto e também não a encontrou, onde ela estaria? A casa estava trancada, não havia como ela ter saído. Foi ao banheiro e lá estava ela, deitada no chão, de bruços, primeiro viu suas pernas brancas que saiam de um vestido azul com bolinhas coloridas. Teria ela dormido no banheiro? Então viu os vidros de desinfetante vazios, o roxo, o amarelo e o verde, estavam todos vazios. Não sabia o que fazer, ajudá-la, ligar para uma ambulância, chamar o vizinho, chorar, gritar. Fez todas as coisas ao mesmo tempo, sem enxergar, sem saber como...
A mãe estava morta. Envenenamento. Teria sido de propósito, para puni-la? Teria sido um ato infantil, uma brincadeira com produtos coloridos, uma tentativa de se alegrar? Ou uma tentativa consciente de acabar com seu sofrimento?
Pessoas desaparecidas há muito apareceram no velório, disseram coisas, choraram, se abraçaram, e por fim jogaram terra por cima dela. Por um momento, no fim de sua existência sua mãe voltou a existir para eles, para ser, logo depois, enterrada em suas lembranças, esquecida novamente, assim com já tinham feito com ela em vida.
Deixaram Sylvia na porta de sua casa. Hesitou muito antes de colocar a chave, mas precisava, o carro atrás dela não iria embora se não fizesse isso, se não entrasse. Finalmente girou a chave, abriu a porta e entrou, ouviu o carro dar a partida e sentiu-se aliviada. O pesadelo havia chegado ao fim. Olhou para a casa escura, acendeu a luz do cômodo, e dos outros todos, tinha a sensação de que a casa havia aumentado assustadoramente.
Ainda estava em choque. Pegou um comprimido e um copo d’água, sentou-se no sofá, olhando para a televisão, pessoas e formas mudando, evanescendo lentamente. Adormeceu. Estava de volta ao cemitério, onde uma multidão sem rosto levava uma enorme embalagem tarja preta. Antes de enterrá-la, pararam para abrir o caixão, para que todos olhassem para a morta pela última vez. Aquilo a aterrorizou, ela não queria que fizessem aquilo, mas não pode impedir. Abriram a embalagem e lá estava ela, não estava morta, estava com os olhos abertos, olhava para a multidão com seu olhar infantil, aterrorizada por não reconhecer ninguém naquela multidão. Ela começou a tentar se encolher, se esconder de todos, mas não havia espaço, mas não foi preciso, eles vieram e fecharam a caixa e a colocaram dentro do buraco, ainda era possível ouvi-la chorando lá dentro...
Acordou assustada. Já era noite. Ela nunca acreditou em vida pós-morte, e o resto de religiosidade que tinha, havia desaparecido com a doença de sua mãe. Mas mesmo assim, sua mente lhe pregava peça, podia sentir a presença de sua mãe na casa, sentia como se ela estivesse em todo lugar, ela queria que isto acabasse, queria deixar sua mãe para trás, queria também esquecer, mas não podia, não conseguia.
Foi até o quarto de sua mãe e abriu uma gaveta cheia de caixas de sapato com fotografias do passado. Fotos de seus irmãos, de sua infância, de seu pai. Todos que habitaram aquela casa e haviam desaparecido. Seu pai também havia morrido, anos antes, mas tinha sido diferente, ainda viviam como uma família na casa, um dia ele simplesmente levou a mão ao peito e morreu, ataque cardíaco. Obviamente foi um choque para todos, mas foi logo superado. Porém isto representou o começo da desintegração daquela família, foi o primeiro da foto que desapareceu, logo foram os outros, e agora, só ela permanece.
Encontrou uma foto sua quando criança segurando a mão de sua mãe. Ela tentava se lembrar como tinha acontecido aquilo com ela, seu corpo tinha sido sempre frágil, sempre doente, ou tinha sido sua mãe que a deixara assim? Talvez a mãe a tenha deixado frágil, ela era a mais nova de cinco irmãos, um fruto temporão do casamento, nasceu quando os outros já se preparavam para sair de casa, viver suas vidas, e então veio ela, para ser mimada, superprotegida, e depois presa, embaraçosamente aceitando tudo que a mãe queria que ela fizesse.
A doença da mãe deu algum sentido para sua vida. Sua prisão era agora justificada, sua mãe precisava dela, não havia outra forma de resolver a situação. Porém, agora a mãe havia tirado sua própria vida, mas ainda vivia dentro dela, não podia se desvencilhar de tudo aquilo tão repentinamente, apagar uma vida que se tornara, além da obrigação, hábito diário. Pegou um dos vestidos de sua mãe e o vestiu, em frente ao grande espelho do guarda-roupas. Olhando as fotos antigas, podia se dizer que a mãe estava ali novamente, rejuvenescida. A semelhança era grande, sua mão voltava a viver novamente naquele espelho. Começou a pensar se teria o mesmo destino, se sofreria também daquele esquecimento progressivo de sua vida? Mas não havia vida para esquecer, esse foi o presente deixado por sua mãe, uma não vida, vazio e solidão.
Pegou um punhado dos remédios de sua mãe e os colocou na boca, mastigando, sentindo o gosto amargo e estranho daquilo tudo, queria apagar aquela possibilidade. Queria sair daquela casa, correr, encontrar alguém para conversar, desabafar, mas não havia ninguém para encontrar. Apenas sua mãe naquele espelho. Começou a andar pela casa, pegar coisas, que depois derrubava e quebrava, e ria daquilo, brincava como uma criança, na sala, nos quartos, mas não tinha coragem de entrar no banheiro, aquele lugar lhe dava medo, ficou horas vagando pela casa, horas noite à dentro, quebrando, chorando, rindo...
Logo o sol ia nascer novamente e era hora de fazer o café, sua filha sairia irritada do quarto para repreendê-la, e depois viria a enfermeira, com seus modos brutos, precisava se esconder, mas onde? Andou pela casa mais uma vez, mas não encontrou refúgio, só havia o banheiro, lá poderia ficar só, parou à porta, ganhando coragem para entrar naquele lugar. O relógio da filha despertou, não havia mais tempo, tinha que ser agora: Ela entrou e encontrou outro, estava horrível, o que tinha acontecido com sua vida, onde ela estava agora?
Logo a mãe começa a falar para a filha no espelho:
“Vê, olha só para você, perdeu tudo que tinha, perdeu tudo, você é fraca, frágil, por isso eu mantive você aqui, não está preparada para viver, tem medo, medo de tudo, por que não fugiu? Eu fugi, deixei tudo para trás, esqueci tudo. Você é uma criatura de obediência e disciplina, seus choros e queixas nunca foram reais o suficiente, você nunca quis, nunca quis nada de verdade, nem mesmo me salvar, você quis isso, você se fez assim...”
Fez cara de choro, queria que ela parasse, mas ela apenas falava e falava, não era justo, não depois do que tinha feito, sua mãe não podia fazer isso com ela. Do outro lado do espelho sua mãe sentou-se em frente a pia, ainda havia esperança, somente ela podia impedir que sofresse mais. Puxou a porta onde ficavam os produtos de limpeza, queria limpar as marcas da filha, limpar aquelas tatuagens horríveis, limpá-la por dentro do que tinha sobrado de sua vida, procurou pelos produtos coloridos, mas não havia mais nada lá, felizmente ela sabia que já estava morta, já havia vivido aquele momento e tudo estava terminado, limpo. Percebendo isso, de súbito, só restava a filha novamente, sentada no mesmo lugar onde a mãe morrera, e uma vontade enorme de sair, de correr para o supermercado porque não havia mais produtos de limpeza...

10 de jan. de 2010

Barbarella

Às sexta-feiras, enquanto trabalhava, Maria Augusta passava o tempo todo olhando para o rélogio. Olhar de Pierrot, refletiade volta, redesenhado em batom preto, o complacente sorriso que as pessoas quando olhavam para ela. Refletia de volta a mesma pena que sentiam dela, pois ela também tinha pena deles.

Fora dali, para alguns poucos amigos e parentes, Maria Augusta vestia a máscara de Guta. Entre eles, ela se sentia mais à vontade, até sentia de vez em quando que alguns deles quase podiam entendê-la, mas ainda não era isso. Não gostava de serMaria Augusta ou Guta. As duas, sempre tão cheias de obrigações e cuidados, andando nas sombras de uma vida normal.

Talvez fosse sua magreza que incomodasse as pessoas. Sua cintura era tão fina que não parecia suportar o peso do resto do corpo. Movia-se como que por mágica, os braços finos pareciam flutuar enquanto andava, não parecia possível haver tendões ou músculos escondidos ali.

Já em casa, rapidamente havia um copo de rum em sua mão, seus olhos agora brilhavam de satisfação e ansiedade, aguardando pacientemente o momento de sua transformação. Em seu mundo secreto nem ela e nem os outros deveriam enxergar nada com nitidez, por isso amava a escuridão e o fato de Maria Augusta usar pesados óculos de grau.

Ela retirava Maria Augusta junto com os óculos e os deixava sobre a cômoda. No espelho já não enxergava mais a Guta familiar e amigável escondida atrás de sua miopia. Vestia a roupa preta e pesados coturnos. Para finalizar a metamorfose, clareava ainda mais a pele já branca com maquiagem, retocava o batom negro e depois de cobri-los dizia em voz alta:

"Bem-vinda, Barbarella."

Enquanto saia ouviu a secretaria eletrônica atender uma ligação:

"Você ligou para Guta ou Barbarella, não importa, a gótica é a mesma, deixe o recado ou não deixe um recado após o sinal, não importa, o problema é todo seu!" Barbarella odiava telefones.

No metrô garotos assobiam a música tema de A Família Adams e de vez quando paravam para dar risada. Enquanto descia do trem ainda pode ouvir um deles dizer: "Mortícia, não quer vir aqui chupar meu pescoço?"

Respondeu baixinho: "Ainda não chegou sua vez, pirralho".

Agora descia a rua e sonhava com o que viria, com tudo que faria naquela noite, conhecia o caminho como se fosse a palma de sua mão, mas nada é constante. Sem os óculos não pôde prever uma mudança na calçada, uma corrente, antes inexistente, que agora impede o acesso de pedestres à rua subitamente impediu que ela passasse. Rodopiou por cima da corrente e, sem tempo para se proteger caiu de cara no chão. Levantou-se rápido e olhou em volta, por reflexo e vergonha, mesmo sem poder enxergar nada com nitidez.

Sentiu gosto de sangue na boca. Provavelmente tinha quebrado um dente e machucou a boca por dentro, mas nada disso incomodava Barbarella, continuou andando até a entrada de seu mundo, sangue escorrendo pelo canto da boca, estava mais charmosa do que nunca, uma vampira recém alimentada. Lambeu o sangue e pediu um copo grande de Campari e foi beber sozinha em um canto, bebeu até sentir se tonta e então desceu para o porão, onde havia música alta e luz estroboscópica. A pista de dança estava lotada, o que a fez sorrir. Lambeu o sangue do canto da boca e sentiu-se feliz por ver tantas vítimas em potencial.

Adorava dançar. Sentia que podia dançar até o final dos tempos. Dançava e olhava as sobras que apareciam em flashs, congeladas em posições epiléticas. Escolhia uma delas e se aproximava, pronta para o ataque.Enlaçava uma delas e levava para a parede, abusando de todas as formas possíveis, se alimentando de sua juventude, de seu corpo e de sua paixão. Depois a devolvia para a pista de dança e continuava dançando como se nada tivesse acontecido.

Depois de várias músicas e vários ataques estava cansada, mas nem pensava em ir embora. Foi até o balcão pegar outra bebida e brincar com uma das velas que serviam de decoração. De repente percebeu uma sombra que parecia um garoto, sozinho, encostado em uma canto, bebendo sozinho. Resolver tentar outro tipo de ataque.

"Olá."

"Oi..." Ele respondeu levantando os olhos de seu copo.

" Por que tanta tristeza?"

"Estou com alguns problemas, não sei como resolver, por isso precisava ficar um pouco sozinho."

"Que tipo de problemas?"

"Minha namorada..."

"Ah, entendo..."

Ele agora olhou melhor para ela, ficou um pouco espantado com sua estranheza, mas logo estava à vontade, falando de sua vida. Depois de algum tempo se deu conta que ainda não sabia com quem está falando:

"Qual é seu nome?"

"Barbarella"

Ele sorriu e devolveu sua alcunha de jogador de RPG:

"Nômade..."

Hesitou um pouco depois disso, esperando sua reação e viu que ela não estranhou nem um pouco seu nome. Sentiu que devia falar sobre seu problema e então começou:

"Sabe, o problema é que namoramos faz um tempo, ela tem a mesma idade que eu e nós não, sabe..."

Ela sorriu:

"Não sei se não me contar..."

“Ela veio de outros relacionamentos e é muito mais experiente que eu, mas ela nem imagina que eu, antes, nunca..."

"Nunca?!"

"Não..."

"Hmm..."

"Eu sei que ela está louca para transar e eu fico dizendo que tem que ser romântico, enrolando, não sei mais o que fazer..."

"Tudo bem, então, vamos?"

"Pra onde?"

"Minha casa, não é muito longe e já estava indo embora, preciso de companhia..."

Ela levou o rapaz para casa e ela pode encarnar totalmente Barbarella. Ela arrancou sua roupa, o amarrou, pingou velas em seu corpo, abusou dele, pedisse que parasse, que implorasse e depois fez com que ele dominasse, por todo o final de semana, sem praticamente sair da cama, até que não podia mais, até que Barbarella desaparecesse em sonhos carnais.

O despertador tocava ás seis da manhã e Maria Augusta o desligou mecanicamente. Levantou-se e pegou seus óculos e viu o rapaz deitado. Juntou sua roupa e jogou em cima dele e o empurrou para fora da cama. Ele tentava acordar e vestir sua roupa ao mesmo tempo que era empurrado para a porta. Fora do apartamento tentou agradecer, mas ela não ouviu, apenas fechou a porta. Aquilo não era mais importante para ela, agora apenas poderia sonhar, todos os dias, com a próxima noite de Barbarella.