10 de jan. de 2010

Barbarella

Às sexta-feiras, enquanto trabalhava, Maria Augusta passava o tempo todo olhando para o rélogio. Olhar de Pierrot, refletiade volta, redesenhado em batom preto, o complacente sorriso que as pessoas quando olhavam para ela. Refletia de volta a mesma pena que sentiam dela, pois ela também tinha pena deles.

Fora dali, para alguns poucos amigos e parentes, Maria Augusta vestia a máscara de Guta. Entre eles, ela se sentia mais à vontade, até sentia de vez em quando que alguns deles quase podiam entendê-la, mas ainda não era isso. Não gostava de serMaria Augusta ou Guta. As duas, sempre tão cheias de obrigações e cuidados, andando nas sombras de uma vida normal.

Talvez fosse sua magreza que incomodasse as pessoas. Sua cintura era tão fina que não parecia suportar o peso do resto do corpo. Movia-se como que por mágica, os braços finos pareciam flutuar enquanto andava, não parecia possível haver tendões ou músculos escondidos ali.

Já em casa, rapidamente havia um copo de rum em sua mão, seus olhos agora brilhavam de satisfação e ansiedade, aguardando pacientemente o momento de sua transformação. Em seu mundo secreto nem ela e nem os outros deveriam enxergar nada com nitidez, por isso amava a escuridão e o fato de Maria Augusta usar pesados óculos de grau.

Ela retirava Maria Augusta junto com os óculos e os deixava sobre a cômoda. No espelho já não enxergava mais a Guta familiar e amigável escondida atrás de sua miopia. Vestia a roupa preta e pesados coturnos. Para finalizar a metamorfose, clareava ainda mais a pele já branca com maquiagem, retocava o batom negro e depois de cobri-los dizia em voz alta:

"Bem-vinda, Barbarella."

Enquanto saia ouviu a secretaria eletrônica atender uma ligação:

"Você ligou para Guta ou Barbarella, não importa, a gótica é a mesma, deixe o recado ou não deixe um recado após o sinal, não importa, o problema é todo seu!" Barbarella odiava telefones.

No metrô garotos assobiam a música tema de A Família Adams e de vez quando paravam para dar risada. Enquanto descia do trem ainda pode ouvir um deles dizer: "Mortícia, não quer vir aqui chupar meu pescoço?"

Respondeu baixinho: "Ainda não chegou sua vez, pirralho".

Agora descia a rua e sonhava com o que viria, com tudo que faria naquela noite, conhecia o caminho como se fosse a palma de sua mão, mas nada é constante. Sem os óculos não pôde prever uma mudança na calçada, uma corrente, antes inexistente, que agora impede o acesso de pedestres à rua subitamente impediu que ela passasse. Rodopiou por cima da corrente e, sem tempo para se proteger caiu de cara no chão. Levantou-se rápido e olhou em volta, por reflexo e vergonha, mesmo sem poder enxergar nada com nitidez.

Sentiu gosto de sangue na boca. Provavelmente tinha quebrado um dente e machucou a boca por dentro, mas nada disso incomodava Barbarella, continuou andando até a entrada de seu mundo, sangue escorrendo pelo canto da boca, estava mais charmosa do que nunca, uma vampira recém alimentada. Lambeu o sangue e pediu um copo grande de Campari e foi beber sozinha em um canto, bebeu até sentir se tonta e então desceu para o porão, onde havia música alta e luz estroboscópica. A pista de dança estava lotada, o que a fez sorrir. Lambeu o sangue do canto da boca e sentiu-se feliz por ver tantas vítimas em potencial.

Adorava dançar. Sentia que podia dançar até o final dos tempos. Dançava e olhava as sobras que apareciam em flashs, congeladas em posições epiléticas. Escolhia uma delas e se aproximava, pronta para o ataque.Enlaçava uma delas e levava para a parede, abusando de todas as formas possíveis, se alimentando de sua juventude, de seu corpo e de sua paixão. Depois a devolvia para a pista de dança e continuava dançando como se nada tivesse acontecido.

Depois de várias músicas e vários ataques estava cansada, mas nem pensava em ir embora. Foi até o balcão pegar outra bebida e brincar com uma das velas que serviam de decoração. De repente percebeu uma sombra que parecia um garoto, sozinho, encostado em uma canto, bebendo sozinho. Resolver tentar outro tipo de ataque.

"Olá."

"Oi..." Ele respondeu levantando os olhos de seu copo.

" Por que tanta tristeza?"

"Estou com alguns problemas, não sei como resolver, por isso precisava ficar um pouco sozinho."

"Que tipo de problemas?"

"Minha namorada..."

"Ah, entendo..."

Ele agora olhou melhor para ela, ficou um pouco espantado com sua estranheza, mas logo estava à vontade, falando de sua vida. Depois de algum tempo se deu conta que ainda não sabia com quem está falando:

"Qual é seu nome?"

"Barbarella"

Ele sorriu e devolveu sua alcunha de jogador de RPG:

"Nômade..."

Hesitou um pouco depois disso, esperando sua reação e viu que ela não estranhou nem um pouco seu nome. Sentiu que devia falar sobre seu problema e então começou:

"Sabe, o problema é que namoramos faz um tempo, ela tem a mesma idade que eu e nós não, sabe..."

Ela sorriu:

"Não sei se não me contar..."

“Ela veio de outros relacionamentos e é muito mais experiente que eu, mas ela nem imagina que eu, antes, nunca..."

"Nunca?!"

"Não..."

"Hmm..."

"Eu sei que ela está louca para transar e eu fico dizendo que tem que ser romântico, enrolando, não sei mais o que fazer..."

"Tudo bem, então, vamos?"

"Pra onde?"

"Minha casa, não é muito longe e já estava indo embora, preciso de companhia..."

Ela levou o rapaz para casa e ela pode encarnar totalmente Barbarella. Ela arrancou sua roupa, o amarrou, pingou velas em seu corpo, abusou dele, pedisse que parasse, que implorasse e depois fez com que ele dominasse, por todo o final de semana, sem praticamente sair da cama, até que não podia mais, até que Barbarella desaparecesse em sonhos carnais.

O despertador tocava ás seis da manhã e Maria Augusta o desligou mecanicamente. Levantou-se e pegou seus óculos e viu o rapaz deitado. Juntou sua roupa e jogou em cima dele e o empurrou para fora da cama. Ele tentava acordar e vestir sua roupa ao mesmo tempo que era empurrado para a porta. Fora do apartamento tentou agradecer, mas ela não ouviu, apenas fechou a porta. Aquilo não era mais importante para ela, agora apenas poderia sonhar, todos os dias, com a próxima noite de Barbarella.





3 comentários:

  1. Eu me lembro do espelho, da barbarella (ela não iria gostar de ver o nome dela com "B" maiúsculo, Marco rs)e das noites no porão. E as vezes dá tanta saudades que machuca.

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Pode dizer, vai, eu aguento ;-)